“A Criança”, de Vladimir Holan, trad. Bruno M. Silva

 Está uma criança com o ouvido nos trilhos
à escuta do comboio.
Perdido na música omnipresente
pouco lhe importa
se o comboio está a chegar ou a partir...
Mas tu estiveste sempre à espera de alguém,
sempre a partir de alguém,
até te teres encontrado e não estares mais em parte alguma.
 
(a partir da versão de Jarmila and Ian Milner, Selected Poems, Penguin)

“Escondidinhas”, de Vasko Popa, trad. Bruno M. Silva

  Alguém se esconde de alguém
Esconde-se debaixo da sua língua
Ele procura-o debaixo da terra
 
Esconde-se na sua testa
Ele procura-o no céu
 
Esconde-se no seu esquecimento
Ele procura-o na erva
 
Procura e procura por ele
Onde é que ele não o procura
E ao procurá-lo perde-se a si mesmo
 
(a partir da versão inglesa de Anne Pennington, Selected Poems, Penguin)

“quando a primeira mulher fez magia com as suas mãos”, de rupi kaur, trad. Ana de Noronha

   quando a primeira mulher abriu as pernas
para deixar o primeiro homem entrar
o que viu ele
enquanto ela o conduzia através do corredor
até ao quarto sagrado
algo jazia expectante
algo que o estremeceu
tanto que a confiança se estilhaçou
de aí em diante
o primeiro homem
observou a mulher
noite e dia
para ela construiu uma cela
para que não pecasse mais
pegou fogo aos seus livros
chamou-a bruxa
e gritou puta
até que a noite chegou
e os olhos cansados o atraiçoaram
a primeira mulher notou que
enquanto sucumbia ao sono
o murmúrio
o batuque
um bater no meio das pernas
campainha
voz
pulsação
pedindo-lhe que abrisse
assim deixou-se ir a sua mão
através do corredor
até ao quarto sagrado
ela viu
deus
a varinha mágica
a língua da serpente
que dentro dela jazia sorrindo
 
- quando a primeira mulher fez magia com as suas mãos

“Uma maçã coroada”, de Vasko Popa, trad. Bruno M. Silva

 Tira o sol da boca
A noite está-nos a enterrar vivos

Esta é a minha maçã
Caiu do céu na minha língua
Deixa-me desfrutá-la sozinho

Abre a boca calcula que a madrugada possa vir até nós
Que o sol nos possa coroar também

Reza para que eu não abra a boca
Já não há mais obras doces
Na maçã para vocês vermes


(a partir da versão inglesa de Anne Pennington, Selected Poems, Penguin)

“O Sol”, de Anne Sexton, trad. Bruno M. Silva

 Ouvi falar de peixes
que vieram à superfície pelo sol
e aí ficaram para sempre,
ombro a ombro,
fileiras de peixes que não regressaram mais,
sugados
de todas as suas manchas altivas e solidões.

Penso em moscas
que vêm de suas cavernas impuras
para a arena.
Primeiro transparentes.
Depois azuis com asas de cobre.
Elas fulguram nas frontes dos homens.
Nem aves nem acrobatas,
irão secar como pequenos sapatos negros.

Eu sou um ser idêntico.
Adoecida pelo frio e o cheiro da casa,
Dispo-me sob a lupa abrasadora.
A minha pele alonga-se como água do mar.
Oh olho amarelo,
deixa-me adoecer com o teu calor,
deixa-me febril e enrugada.
Agora estou absolutamente entregue.
Sou a tua filha, o teu doce,
o teu sacerdote, a tua boca e a tua ave
e falarei a todos de ti,
até que me sepultem para sempre,
uma ténue bandeira cinza.

Maio 1962

“Olá”, de Gregory Corso, trad. Bruno M. Silva

 É desastroso ser um veado ferido.
Eu sou o mais ferido, os lobos perseguem,
E tenho os meus fracassos, também.
A minha carne é apanhada no Gancho Inevitável!
Enquanto criança eu vi muitas coisas que não queria ser.
Serei eu a pessoa que não queria ser?
Aquele que fala-consigo-mesmo?
Aquele de quem os-vizinhos-fazem-pouco?
Serei eu aquele que, nas escadas do museu, dorme de lado?
Usarei o manto de um homem que falhou?
Serei eu o homem louco?
Eu, a grande serenada das coisas,
Serei eu a passagem mais quebrada?

“Nós”, de Anne Sexton, trad. Bruno M. Silva

 Eu estava embrulhada em pêlo
negro e pêlo branco e
tu despiste-me e
puseste-me diante da luz dourada
e coroaste-me,
enquanto fora da porta,
como dardos inclinados, caía a neve.
Enquanto vinte e cinco centímetros de neve
caíam como estrelas
em minúsculos fragmentos de cálcio,
nós entravamos nos nossos próprios corpos
(aquele quarto que nos há-de enterrar)
e tu entravas no meu corpo
(aquele quarto que nos há-de sobreviver)
e primeiro esfreguei os teus
pés molhados com uma toalha
porque eu era tua serva
e então chamaste-me princesa.
Princesa!

Oh e então
ergui-me na minha pele dourada
e abandonei os salmos
e abandonei a roupa
e tu soltaste os freios
e tu soltaste as rédeas
e eu abri os botões,
os ossos, as confusões,
os postais de Nova Inglaterra,
as dez da noite de Janeiro,
e erguemo-nos como trigo,
acres e acres de ouro,
e nós ceifamos,
nós ceifamos.

(Anne Sexton, Love Poems 1969)

“Eu não recomendaria o Amor”, de Harold Norse, trad. Bruno M. Silva

             a minha cabeça parecia apunhalada 
por uma coroa de espinhos mas eu fiz uma piada e entrei no metro
e escondi-me na school johns para me masturbar
e secretamente escrevi
            sobre o inferno adolescente
porque eu era “diferente”
o primeiro e último da minha espécie
abafando sensações agudas
em piscinas e balneários
viciado em lábios e genitais
louco por nádegas
que Whitman e Lorca
e Catulo e Marlowe
e Michelangelo
e Sócrates admiraram
 
e eu escrevi: Amigos,
se desejais sobreviver
eu não recomendaria
o Amor