Ele cavalgou sozinho toda a noite, assustado, impiedosamente esporeando
as costelas do seu cavalo. Eles estarão à sua espera, foi-lhe dito, que viesse sem falta;
havia grande urgência. Quando chegou de madrugada,
ninguém o esperava, ninguém lá estava. Ele procurou.
Casas desoladas, trancadas. Dormiam.
Ele ouviu, perto, o seu cavalo, ofegando –
espuma na sua boca, feridas nas costelas e as costas laceradas.
Ele abraçou-se ao pescoço do cavalo e chorou.
Os olhos do cavalo, grandes, negros, moribundos,
eram duas torres, as suas, distantes, numa paisagem onde chovia.
Mês: Outubro 2019
“Fala”, de Faiz Ahmad Faiz (1911 – 1984), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Baran Farooqi
Fala, pois os teus lábios são livres
Fala, pois a tua língua ainda te pertence
O teu corpo erguido ainda é teu
Fala, pois a tua alma ainda é tua
Olha, como na loja do ferreiro
As brasas estão quentes, o ferro lampeja
As bocas das fechaduras se abrem
As correntes estendem o seu alcance
Fala, pois o pouco tempo que tens é suficiente
Antes da morte do corpo e da língua
Fala, pois a verdade ainda existe
Fala, diz tudo o que há para ser dito
“Pata”, de Vasko Popa (1922 – 1991), trad. Bruno M. Silva
Ela oscila pela poeira
Onde nenhum peixe sorri
Nos flancos carrega
O desassossego da água
Desajeitada
Ela oscila lentamente
Os juncos em que pensa
Alcançá-los-á de qualquer forma
Nunca
Nunca será capaz
De caminhar
Como foi capaz
De lavrar os espelhos
(a partir da versão inglesa de Anne Pennington, Selected Poems, Penguin)
“Cavalo”, de Vasko Popa (1922 – 1991), trad. Bruno M. Silva
Normalmente
Tem oito patas
O homem veio
Dos quatro cantos da terra
Viver entre os seus maxilares
Depois ele mordeu o lábio até ao sangue
Ele queria
Morder as hastes do milho
Foi tudo há muito tempo
Nos seus belos olhos
A dor fechou-se
Num círculo
Pois o caminho não termina
E ele deve arrastar consigo
O mundo inteiro
(a partir da versão inglesa de Anne Pennington, Selected Poems, Penguin)
“Porca”, de Vasko Popa (1922 – 1991), trad. Bruno M. Silva
Só quando sentiu
A faca selvagem na garganta
É que o véu encarnado
Lhe explicou o jogo
E ela lamentou
Ter-se afastado
Do abraço da lama
E ter corrido nessa noite
Pelo campo alegremente
Veloz até ao portão amarelo
(a partir da versão inglesa de Anne Pennington, Selected Poems, Penguin)
“Ressurreição”, de Yoshihara Sachiko (1932- 2002). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Kenneth Rexroth e Ikuko Atsumi
Matar o amor para que não me mate a mim, isso é preservação
A pistola apontada a ti volta-se para o meu coração
Pecado quente e frio castigo
Eu abro-me a partir daí, e talvez desse
Assombroso buraco a morte silenciosamente se espalhe
Os sons gotejantes do mundo desaparecem depois
E na longa longa cela solitária talvez seja
Uma morte inquieta uma morte em chamas uma vida em chamas
A aranha molhada à chuva faz a teia com o seu suor
E gradualmente afina e espalha o reluzente e oval Zero
Dois poemas de Nyo Yoshimoto (1320-1388). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
O meu coração está sereno,
habituado aos ventos da tempestade
soprando nos pinheiros
- mas não é como se eu tivesse fugido
para uma cabana nas colinas.
*
Na neblina da manhã
um barco separa as ondas
ao longo da costa,
quase desaparecendo de vista
antes de se fazer ao alto mar.
“Moluscos”, de Ishigaki Rin (1920 – 2004). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Kenneth Rexroth e Ikuko Atsumi
Acordo à meia noite
Os pequenos moluscos que comprei na noite passada
estão vivos com as suas bocas ligeiramente abertas.
Comê-los-ei a todos quando o dia nascer.
E rio-me como uma bruxa.
Depois não me resta nada da noite,
senão dormir com a minha boca ligeiramente aberta.
(in Women Poets of Japan)