“Memória”, de Helen Hoyt (1887-1972), trad. Bruno M. Silva

Lembro-me da nossa dor, do nosso riso;
Sei que certamente nos beijámos e chorámos e comemos juntos;
Lembro-me dos nossos lugares e jogos, e dos nossos planos – 
Da pequena casa e de como tudo resultou em nada – 
Lembro-me bem:
Mas não me lembro do nosso amor,
Não me lembro do nosso amor. 

“O Idiota”, de Jacques Prévert (1900-1977), trad. Bruno M. Silva

 Ele diz que não com a cabeça
 mas diz sim com o coração
 ele diz sim ao que ama
 ele diz não ao professor
 ele levanta-se
 é questionado
 e todos os problemas são apresentados
 um riso súbito prende-o
 e ele apaga tudo
 as palavras as figuras
 os nomes as datas
 as frases e as ciladas
 e apesar das ameaças do professor
 sob o escárnio de prodigiosas crianças
 com giz de todas as cores
 no quadro negro da desgraça
 ele desenha o rosto da felicidade. 

“poema para o meu útero”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva

tu         útero
tu foste paciente
como uma meia
enquanto eu guardei em ti
os meus filhos vivos e mortos
e agora
eles querem-te arrancar
como meias inúteis
para onde eu vou
para onde é que eu vou
velha menina
sem ti
útero
minha pegada ensanguentada
minha cozinha de estrogénio
meu saco negro de desejo
para onde posso eu ir
descalça
sem ti
para onde podes tu ir
sem mim
 
 
(a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)

“poema no meu quadragésimo aniversário para a minha mãe que morreu jovem”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva

bem já quase cheguei ao lugar onde caíste
tropeçando no arame na quadragésima-quarta volta
e eu decidi continuar a correr,
a cabeça erguida, o corpo vigilante, os dedos
apontados como dardos ao primeiro lugar, por isso
talvez nem repare no fino arame
que agora me envolve os tornozelos mas
estou a tentar chegar longe mamã,
correndo como o diabo e se eu cair
caí
 
 
(a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)

“uma mulher que ame”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva

uma mulher que ame
homens impossíveis
senta-se muito tempo fechada
olhando as janelas
ela não tem irmão
que compreenda
onde ela não vai
as irmãs oferecem-lhe
os seus próprios seios, vasos
cheios e cremosos mas ela
não pode beber porque
ela ama homens impossíveis
 
uma mulher que ame
homens impossíveis
à noite ouve música
que não pode cantar
bebe bom xerez
engole as notas
oxidadas na garganta
mas ela não enche
ela já está cheia
de amor por homens impossíveis
 
uma mulher que ame
homens impossíveis
promete todas as manhãs
que vai tomar esse dia nas suas
mãos
despi-lo           deitar-se com ele
aprender a amá-lo
mas não o faz             ela passa por
estranhos         passa por família
esquece as suas marcas
os seus aniversários
lembra-se apenas dos nomes
das manchas dos homens impossíveis
 
 
(a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)

“Uma pena. Nós éramos uma invenção tão boa”, de Yehuda Amichai (1924-2000), trad. Bruno M. Silva

Eles amputaram
As tuas coxas das minhas ancas.
A meu ver
São todos cirurgiões. Todos eles.
 
Eles desmantelaram-nos
Um do outro.
A meu ver
São todos engenheiros. Todos eles.
 
Uma pena. Nós éramos uma invenção
Tão boa e terna.
Um avião feito de homem e mulher.
Asas e tudo.
Pairávamos um pouco sobre a terra.
 
Nós até voávamos um pouco.