Lembro-me da nossa dor, do nosso riso; Sei que certamente nos beijámos e chorámos e comemos juntos; Lembro-me dos nossos lugares e jogos, e dos nossos planos – Da pequena casa e de como tudo resultou em nada – Lembro-me bem: Mas não me lembro do nosso amor, Não me lembro do nosso amor.
Mês: Outubro 2020
“Canção”, de Jacques Prévert (1900-1977), trad. Bruno M. Silva
Que dia é este É todos os dias Minha amiga É toda a vida Meu amor Nós amamo-nos e vivemos Nós vivemos e amamo-nos E não sabemos que vida é esta E não sabemos que dia é este E não sabemos que amor é este.
“O Idiota”, de Jacques Prévert (1900-1977), trad. Bruno M. Silva
Ele diz que não com a cabeça mas diz sim com o coração ele diz sim ao que ama ele diz não ao professor ele levanta-se é questionado e todos os problemas são apresentados um riso súbito prende-o e ele apaga tudo as palavras as figuras os nomes as datas as frases e as ciladas e apesar das ameaças do professor sob o escárnio de prodigiosas crianças com giz de todas as cores no quadro negro da desgraça ele desenha o rosto da felicidade.
“poema para o meu útero”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
tu útero tu foste paciente como uma meia enquanto eu guardei em ti os meus filhos vivos e mortos e agora eles querem-te arrancar como meias inúteis para onde eu vou para onde é que eu vou velha menina sem ti útero minha pegada ensanguentada minha cozinha de estrogénio meu saco negro de desejo para onde posso eu ir descalça sem ti para onde podes tu ir sem mim (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)
“língua materna: à criança acabada de nascer”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
se eu fosse eloquente na tua língua tentar-te-ia dizer como é quando alguma coisa difícil te ama, como é quando começas a amá-la de volta, e como isto pode custar-te tudo.
“poema no meu quadragésimo aniversário para a minha mãe que morreu jovem”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
bem já quase cheguei ao lugar onde caíste tropeçando no arame na quadragésima-quarta volta e eu decidi continuar a correr, a cabeça erguida, o corpo vigilante, os dedos apontados como dardos ao primeiro lugar, por isso talvez nem repare no fino arame que agora me envolve os tornozelos mas estou a tentar chegar longe mamã, correndo como o diabo e se eu cair caí (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)
“uma mulher que ame”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
uma mulher que ame homens impossíveis senta-se muito tempo fechada olhando as janelas ela não tem irmão que compreenda onde ela não vai as irmãs oferecem-lhe os seus próprios seios, vasos cheios e cremosos mas ela não pode beber porque ela ama homens impossíveis uma mulher que ame homens impossíveis à noite ouve música que não pode cantar bebe bom xerez engole as notas oxidadas na garganta mas ela não enche ela já está cheia de amor por homens impossíveis uma mulher que ame homens impossíveis promete todas as manhãs que vai tomar esse dia nas suas mãos despi-lo deitar-se com ele aprender a amá-lo mas não o faz ela passa por estranhos passa por família esquece as suas marcas os seus aniversários lembra-se apenas dos nomes das manchas dos homens impossíveis (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)
“a lição das folhas em queda”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
as folhas acreditam que o desprendimento é amor que o amor é fé que a fé é graça que a graça é deus eu concordo com as folhas (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)
“Uma pena. Nós éramos uma invenção tão boa”, de Yehuda Amichai (1924-2000), trad. Bruno M. Silva
Eles amputaram As tuas coxas das minhas ancas. A meu ver São todos cirurgiões. Todos eles. Eles desmantelaram-nos Um do outro. A meu ver São todos engenheiros. Todos eles. Uma pena. Nós éramos uma invenção Tão boa e terna. Um avião feito de homem e mulher. Asas e tudo. Pairávamos um pouco sobre a terra. Nós até voávamos um pouco.