As pegadas desapareceram do meu jardim solitário - a cor do musgo está agora esquecida sob as pétalas caídas. * Um cuco canta - mas a sua voz não anuncia o início da manhã. Grande parte da noite está ainda entregue à vigília de um velho. * O que hei-de pensar? Como a maré que se recolhe na baía de Namuri, aquele que eu amo afasta-se de mim. * Na minha infância acordava inquietado pelo sussurrar dos juncos - agora fico acordado à noite à espera do vento. * Sim, mas ainda assim, embora as minhas noites de tormento não tenham alcançado nada, eu vou acreditar até ao fim - até nas suas mentiras.
Mês: Junho 2022
“Sonhei que me guiavas” de Antonio Machado (1875-1939) trad. Bruno M. Silva
Sonhei que me guiavas por uma branca vereda, entre o campo verde, em direcção ao azul das serras, em direcção aos montes azuis, numa manhã serena. Senti a tua mão na minha, a tua mão de companheira, a tua voz de menina no meu ouvido soando como um sino recente, como um sino inaudito na manhã de primavera. Eram a tua voz, a tua mão, em sonhos, tão reais!... Vive, esperança. Quem sabe o que devora a terra!
Poema de Antonio Machado (1875-1939) trad. Bruno M. Silva
E era o demónio dos meus sonhos, o mais belo de todos os anjos. Os seus olhos vitoriosos ardiam como metal, e as chamas que caíam da sua tocha como gotas iluminavam a profunda cadeia da minha alma. "Virás comigo?" - "Não, jamais! Assustam-me os túmulos e cadáveres." Mas a sua mão de ferro segurou-me. "Virás comigo."... E no meu sonho caminhei cego diante da sua tocha rubra. Na cadeia escutei o som de correntes e o alvoroço das feras enjauladas.
Poema de Nun Abutsu (1222-1283) trad. Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Para o orvalho semelhante às joias como para as minhas lágrimas não existe descanso: ambos dispersos no vento de outono na casa de alguém que morreu.
“Acorda”, de Adam Zagajewski (1945-2021 trad. Bruno M. Silva
Acorda, alma. Não sei onde estás, onde te escondes, mas acorda, por favor, ainda estamos juntos, o caminho ainda está à nossa frente, uma tira luminosa de madrugada será a nossa estrela.
“Dor”, de Raymond Carver (1938-1988) trad. Bruno M. Silva
Acordei cedo esta manhã e da minha cama olhei ao longe o Canal onde um pequeno barco se movia pelas águas agitadas, uma pequena luz dentro ligada. Lembrei-me do meu amigo que gritava o nome da mulher morta do alto dos cumes de Perúgia. Que lhe punha o prato sobre a mesa pobre muito depois de ela já ter morrido. E abria as janelas para que ela sentisse o ar fresco. Eu tinha vergonha destas manifestações. Eu e todos os outros amigos. Eu não conseguia entender. Pelo menos até esta manhã.
“Chuva”, de Raymond Carver (1938-1988) trad. Bruno M. Silva
Acordei esta manhã com uma urgência terrível de ficar na cama a ler. Tentei contrariar um pouco. Depois olhei pela janela a chuva. E desisti. E entreguei-me completamente à manhã chuvosa. Viveria eu de novo toda a minha vida? Cometeria de novo os mesmos erros imperdoáveis? Sim, se me dessem uma pequena oportunidade. Sim.
“Ressurreição”, de Vladimír Holan [1905-1980] trad. Bruno M. Silva
É verdade que depois desta vida seremos acordados por um terrível som de trombetas? Perdoa-me, Deus, mas eu creio que o início e a ressurreição de todos os mortos serão anunciados pelo som do galo. Depois ficaremos deitados um pouco mais.. A primeira a levantar-se será a Mãe… Poderemos ouvi-la gentilmente atear o fogo, colocar a chaleira no fogão e ternamente retirar o bule do armário. Então estaremos em casa mais um vez.
“Sorrisos”, de Vladimír Holan [1905-1980] trad. Bruno M. Silva
Existem muitos sorrisos, mas estou a pensar no mais difícil, no mais simples de todos. É profundo, cortado de ambos os lados pela lamina do tempo, um sorriso que precisa de mais uma ruga para descobrir tudo e estar pronto para o nome de Deus. Um sorriso assim fica no rosto mais tempo do que a alegria que o gerou - ou é o sorriso que vem antes da alegria e desaparece deixando o rosto entregue à felicidade.
“Encontro num Elevador”, Vladimír Holan [1905-1980] trad. Bruno M. Silva
Entrámos no elevador. Os dois, sozinhos. Olhamos um para o outro e mais nada. Duas vidas, um momento pleno, sagrado. No quinto andar ela saiu e eu continuei a subir sabendo que não a voltaria a ver, que tudo isto fora um encontro derradeiro, que se eu a seguisse agora seria como um homem morto cercando-a, e que se ela se voltasse para mim seria já de um outro mundo.