A minha imagem é sempre um pouco mais alta do que eu. Ri-se sempre um pouco mais tarde. Eu coro como um caranguejo cozido, e recorto uma projecção de mim mesma com a tesoura das unhas. Quando deixo que os meus lábios se aproximem do espelho, ele distorce, e eu desapareço de vista, como um nobre desaparece atrás do seu escudo, ou um guarda por trás da sua tatuagem. O meu espelho é o cemitério de sorrisos. Viajante, quando vieres a Lakaidaimon, diz-lhes que aqui se ergue um túmulo, pintado de branco com maquilhagem, com apenas o vento soprando no espelho.
Categoria: Poesia Japonesa
Cinco Poemas de Fujiwara no Tameie [1198-1275], trad. Bruno M. Silva
As pegadas desapareceram do meu jardim solitário - a cor do musgo está agora esquecida sob as pétalas caídas. * Um cuco canta - mas a sua voz não anuncia o início da manhã. Grande parte da noite está ainda entregue à vigília de um velho. * O que hei-de pensar? Como a maré que se recolhe na baía de Namuri, aquele que eu amo afasta-se de mim. * Na minha infância acordava inquietado pelo sussurrar dos juncos - agora fico acordado à noite à espera do vento. * Sim, mas ainda assim, embora as minhas noites de tormento não tenham alcançado nada, eu vou acreditar até ao fim - até nas suas mentiras.
Poema de Nun Abutsu (1222-1283) trad. Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Para o orvalho semelhante às joias como para as minhas lágrimas não existe descanso: ambos dispersos no vento de outono na casa de alguém que morreu.
Três poemas de Saigyō (1118-1190) trad. Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Meredith Mckinney
Vazio como o céu o meu coração é névoa primaveril dissipando-se desejoso por deixar este mundo para trás * Como poderia eu atravessar a vida sem saber aquilo que ela é - um caminho que inesperadamente leva à morte? * Efémeros aqueles anos em que eu pensava que viveria sempre anos perdidos num sonho passageiro [in Gazing at the Moon, Buddhist Poems of Solitude]
“Dores de Parto”, de Yosano Akiko (1878-1942), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Kenneth Rexroth e Ikuko Atsumi
Hoje estou doente, doente no meu corpo, de olhos abertos, emudecida, estou deitada na cama de parto. Porque é que eu, tão acostumada à proximidade da morte, da dor, do sangue, do grito, agora tremo incontrolavelmente de temor? Um jovem e agradável médico tentou reconfortar-me, e falou sobre a alegria de dar à luz. Uma vez que eu sei mais do que ele sobre esta matéria, de que me serve o seu tagarelar? Conhecimento não é realidade. A experiência pertence ao passado Que se calem então os que carecem de urgência Que os observadores se contentem com observar. Eu estou sozinha, perfeitamente, inteiramente, absolutamente entregue a mim mesma, mordendo os meus lábios, segurando o meu corpo rígido, servindo um fado inexorável. Existe apenas uma verdade. Darei à luz uma criança, a verdade movendo-se do meu interior para fora. Nem bom nem mau; real, sem que haja nisto falsidade. Com as primeiras dores de parto, subitamente o sol empalidece. O mundo indiferente fica estranhamente calmo. Eu estou sozinha. É sozinha que eu sou.
Dois poemas de Fujiwara no Ietaka (1158-1237), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Ainda agora o ano começou a florir. Como pode ser, então, que destas laranjas se desprenda um aroma tão antigo? * Todas as coisas encontram o seu fim – e então o dia procura amanhecer com os sinos da manhã. Mas a longa noite persiste com a lua ainda no céu.
Poema de Nun Abutsu (1222-1283), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Em uma outra vida quem me prendeu a este destino? – à angústia de viver sem ninguém para desatar o meu vestido.
Quatro poemas de Kyōgoku Tamekane (1254-1332). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Fascinado pela lua
ele passa pela estalagem
onde deveria dormir essa noite.
O viajante nocturno
atravessa já o caminho de amanhã.
*
Às voltas o tempo torna
e então talvez de novo
eu encontre a primavera.
Mas este dia, esta noite –
isto nunca voltará.
*
No meu coração deposito
a cor das ervas e das árvores
que agora contemplo –
para que pelo menos aí
a sua imagem fique comigo.
*
A tristeza das coisas
é algo sem cor –
como quando ao anoitecer
o outono chega pairando
nas plumas dos miscanthus.
“Ressurreição”, de Yoshihara Sachiko (1932- 2002). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Kenneth Rexroth e Ikuko Atsumi
Matar o amor para que não me mate a mim, isso é preservação
A pistola apontada a ti volta-se para o meu coração
Pecado quente e frio castigo
Eu abro-me a partir daí, e talvez desse
Assombroso buraco a morte silenciosamente se espalhe
Os sons gotejantes do mundo desaparecem depois
E na longa longa cela solitária talvez seja
Uma morte inquieta uma morte em chamas uma vida em chamas
A aranha molhada à chuva faz a teia com o seu suor
E gradualmente afina e espalha o reluzente e oval Zero
Dois poemas de Nyo Yoshimoto (1320-1388). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
O meu coração está sereno,
habituado aos ventos da tempestade
soprando nos pinheiros
- mas não é como se eu tivesse fugido
para uma cabana nas colinas.
*
Na neblina da manhã
um barco separa as ondas
ao longo da costa,
quase desaparecendo de vista
antes de se fazer ao alto mar.