“E devo então viver contigo, Dor”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva

E devo então viver contigo, Dor,
Toda a minha vida? - partilhar o meu fogo, a minha cama,
Partilhar – pior de tudo! - a mesma cabeça? - 
E quando me alimento, alimentar-te a ti também?
Que assim seja, então, se é esta a minha verdade:
Jantemos, camarada, e que sejamos alimentadas;
Eu não posso morrer até que tu estejas morta,
E, contigo viva, posso viver a vida até ao fim.
Ainda assim feres-me, ingrata convidada,
Espiando os meus ofícios ardentes
Com olhar gelado; roubando-me as noites de descanso;
Tornando difíceis os trabalhos outrora simples.
Morrerás comigo: mas eu irei, no melhor dos casos,
Perdoar-te um pouco, por tudo o que me fizeste.

“O amor não é tudo” de Edna St. Vincent Millay (1892-1950) trad. Bruno M. Silva

O amor não é tudo: não é comida nem bebida
Nem sono nem um telhado contra a chuva;
Não é escombro sobre o mar para quem se afunda
E flutua e afunda e flutua e afunda outra vez;
O amor não é capaz de encher de ar o pulmão ferido,
Nem de limpar o sangue, ou sarar o osso partido;
E no entanto, enquanto eu falo,
Muitos homens se acercam da morte pela falta de amor.
Pode muito bem ser que numa hora tenebrosa,
Presa à dor e implorando libertação,
Ou acometida por forças além da minha vontade,
Eu pudesse ser levada a trocar o teu amor pela paz,
Ou a trocar a memória desta noite por comida.
Poderia muito bem ser. Mas eu não creio que o fizesse.

“Dor”, de Raymond Carver (1938-1988) trad. Bruno M. Silva

Acordei cedo esta manhã e da minha cama
olhei ao longe o Canal onde
um pequeno barco se movia pelas águas agitadas,
uma pequena luz dentro ligada. Lembrei-me
do meu amigo que gritava
o nome da mulher morta do alto dos cumes
de Perúgia. Que lhe punha o prato
sobre a mesa pobre muito depois
de ela já ter morrido. E abria as janelas
para que ela sentisse o ar fresco. Eu tinha vergonha
destas manifestações. Eu e todos os outros
amigos. Eu não conseguia entender.
Pelo menos até esta manhã.

“Eu olho para o mundo”, de Langston Hughes (1902-1967), trad. Bruno M. Silva

Eu olho o mundo
Pelos olhos que despertam num rosto negro – 
E é isto que eu vejo:
Este lugar estreito e vedado
Que me destinaram.

Olho depois os muros absurdos
Pelos olhos negros num rosto negro – 
E é isto que eu sei:
Que estes muros que a opressão constrói
Terão que ir!

Olho para o meu próprio corpo
Com olhos já não cegos – 
E vejo que as minhas mãos podem construir
O mundo que existe na minha cabeça.
Apressemo-nos então a encontrar, camaradas,
O caminho por achar.

“entrando no sul”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva

vesti o casaco de minha mãe.
é quente e familiar
como velho pêlo
e posso ouvir vozes sussurrantes
através dele.    demasiados
animais morreram
para que fosse feito.   as mangas
desenrolam-se em direcção às mãos
como cordas.  eu vou usá-lo
porque ela o amou
mas o sangue de que foi criado acumula-se
sobre os meus ombros
pesado escuro e vivo 

“a morte de thelma sayles”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva

não deixo vestígios para que os meus amores vivos
não me possam seguir. junto ao rio
a maioria volta para trás, as suas almas tremem,
mas a minha menina fica sozinha na margem
e olha. arranco o meu coração do bolso
e atiro-o. sorrio ao vê-la apanhar tudo
o que alguma vez irá apanhar e voltar para casa
e para os seus filhos. a maternidade
tornou-o forte, sussurro ao seu ouvido
por entre as folhas. 

“confissão”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva

 pai 
 não sou semelhante à fé necessária.
 eu duvido.
 tenho as certezas de uma mulher;
 corpos são-me arrancados,
 empurrados para dentro de mim.
 osso e carne é o que conheço.
  
 pai
 os anjos dizem que não têm asas.
 acordei uma manhã
 sentindo como os poderia ver.
 podia distinguir as suas sombras
 na sombra. eu não sou
 semelhante à fé necessária.
  
 pai 
 vejo a tua mãe hirta
 sem ombros sem sapatos a teu lado.
 ouço-a sussurrar-te verdades que eu não posso conhecer.
 pai eu duvido.
  
 pai 
 quais são as verdadeiras certezas?
 a tua mãe fala de amor.
  
 os anjos dizem que não têm asas.
 não sou semelhante à fé necessária.
 procuro fugir de tão surpreendente presença;
 os anjos correm diante de mim
 como uma tocha. 

“Cisnes Selvagens”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva

Olhei o meu coração enquanto os cisnes selvagens sobrevoavam.
E o que vi que ainda não vira antes?
Apenas uma questão a menos ou a mais;
Nada que coincidisse com o voo de aves selvagens.
Coração fatigado, vivendo e morrendo sempre,
Casa sem ar, eu abandono-te e tranco a tua porta.
Cisnes selvagens, atravessem a cidade, atravessem
A cidade de novo, arrastando as pernas e bramindo.