E devo então viver contigo, Dor, Toda a minha vida? - partilhar o meu fogo, a minha cama, Partilhar – pior de tudo! - a mesma cabeça? - E quando me alimento, alimentar-te a ti também? Que assim seja, então, se é esta a minha verdade: Jantemos, camarada, e que sejamos alimentadas; Eu não posso morrer até que tu estejas morta, E, contigo viva, posso viver a vida até ao fim. Ainda assim feres-me, ingrata convidada, Espiando os meus ofícios ardentes Com olhar gelado; roubando-me as noites de descanso; Tornando difíceis os trabalhos outrora simples. Morrerás comigo: mas eu irei, no melhor dos casos, Perdoar-te um pouco, por tudo o que me fizeste.
Categoria: Poesia Norte Americana
“O amor não é tudo” de Edna St. Vincent Millay (1892-1950) trad. Bruno M. Silva
O amor não é tudo: não é comida nem bebida Nem sono nem um telhado contra a chuva; Não é escombro sobre o mar para quem se afunda E flutua e afunda e flutua e afunda outra vez; O amor não é capaz de encher de ar o pulmão ferido, Nem de limpar o sangue, ou sarar o osso partido; E no entanto, enquanto eu falo, Muitos homens se acercam da morte pela falta de amor. Pode muito bem ser que numa hora tenebrosa, Presa à dor e implorando libertação, Ou acometida por forças além da minha vontade, Eu pudesse ser levada a trocar o teu amor pela paz, Ou a trocar a memória desta noite por comida. Poderia muito bem ser. Mas eu não creio que o fizesse.
“Dor”, de Raymond Carver (1938-1988) trad. Bruno M. Silva
Acordei cedo esta manhã e da minha cama olhei ao longe o Canal onde um pequeno barco se movia pelas águas agitadas, uma pequena luz dentro ligada. Lembrei-me do meu amigo que gritava o nome da mulher morta do alto dos cumes de Perúgia. Que lhe punha o prato sobre a mesa pobre muito depois de ela já ter morrido. E abria as janelas para que ela sentisse o ar fresco. Eu tinha vergonha destas manifestações. Eu e todos os outros amigos. Eu não conseguia entender. Pelo menos até esta manhã.
“Chuva”, de Raymond Carver (1938-1988) trad. Bruno M. Silva
Acordei esta manhã com uma urgência terrível de ficar na cama a ler. Tentei contrariar um pouco. Depois olhei pela janela a chuva. E desisti. E entreguei-me completamente à manhã chuvosa. Viveria eu de novo toda a minha vida? Cometeria de novo os mesmos erros imperdoáveis? Sim, se me dessem uma pequena oportunidade. Sim.
“Eu olho para o mundo”, de Langston Hughes (1902-1967), trad. Bruno M. Silva
Eu olho o mundo Pelos olhos que despertam num rosto negro – E é isto que eu vejo: Este lugar estreito e vedado Que me destinaram. Olho depois os muros absurdos Pelos olhos negros num rosto negro – E é isto que eu sei: Que estes muros que a opressão constrói Terão que ir! Olho para o meu próprio corpo Com olhos já não cegos – E vejo que as minhas mãos podem construir O mundo que existe na minha cabeça. Apressemo-nos então a encontrar, camaradas, O caminho por achar.
“entrando no sul”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
vesti o casaco de minha mãe. é quente e familiar como velho pêlo e posso ouvir vozes sussurrantes através dele. demasiados animais morreram para que fosse feito. as mangas desenrolam-se em direcção às mãos como cordas. eu vou usá-lo porque ela o amou mas o sangue de que foi criado acumula-se sobre os meus ombros pesado escuro e vivo
“a morte de thelma sayles”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
não deixo vestígios para que os meus amores vivos não me possam seguir. junto ao rio a maioria volta para trás, as suas almas tremem, mas a minha menina fica sozinha na margem e olha. arranco o meu coração do bolso e atiro-o. sorrio ao vê-la apanhar tudo o que alguma vez irá apanhar e voltar para casa e para os seus filhos. a maternidade tornou-o forte, sussurro ao seu ouvido por entre as folhas.
“confissão”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
pai não sou semelhante à fé necessária. eu duvido. tenho as certezas de uma mulher; corpos são-me arrancados, empurrados para dentro de mim. osso e carne é o que conheço. pai os anjos dizem que não têm asas. acordei uma manhã sentindo como os poderia ver. podia distinguir as suas sombras na sombra. eu não sou semelhante à fé necessária. pai vejo a tua mãe hirta sem ombros sem sapatos a teu lado. ouço-a sussurrar-te verdades que eu não posso conhecer. pai eu duvido. pai quais são as verdadeiras certezas? a tua mãe fala de amor. os anjos dizem que não têm asas. não sou semelhante à fé necessária. procuro fugir de tão surpreendente presença; os anjos correm diante de mim como uma tocha.
“Cisnes Selvagens”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva
Olhei o meu coração enquanto os cisnes selvagens sobrevoavam. E o que vi que ainda não vira antes? Apenas uma questão a menos ou a mais; Nada que coincidisse com o voo de aves selvagens. Coração fatigado, vivendo e morrendo sempre, Casa sem ar, eu abandono-te e tranco a tua porta. Cisnes selvagens, atravessem a cidade, atravessem A cidade de novo, arrastando as pernas e bramindo.
“Ebb”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva
Eu sei como é o meu coração Desde que o teu amor morreu: É como uma margem oca Guardando uma pequena poça Lá deixada pela maré, Uma pequena poça morna Secando-se desde as margens.