A minha imagem é sempre um pouco mais alta do que eu. Ri-se sempre um pouco mais tarde. Eu coro como um caranguejo cozido, e recorto uma projecção de mim mesma com a tesoura das unhas. Quando deixo que os meus lábios se aproximem do espelho, ele distorce, e eu desapareço de vista, como um nobre desaparece atrás do seu escudo, ou um guarda por trás da sua tatuagem. O meu espelho é o cemitério de sorrisos. Viajante, quando vieres a Lakaidaimon, diz-lhes que aqui se ergue um túmulo, pintado de branco com maquilhagem, com apenas o vento soprando no espelho.
Categoria: Poesia Traduzida
Cinco Poemas de Fujiwara no Tameie [1198-1275], trad. Bruno M. Silva
As pegadas desapareceram do meu jardim solitário - a cor do musgo está agora esquecida sob as pétalas caídas. * Um cuco canta - mas a sua voz não anuncia o início da manhã. Grande parte da noite está ainda entregue à vigília de um velho. * O que hei-de pensar? Como a maré que se recolhe na baía de Namuri, aquele que eu amo afasta-se de mim. * Na minha infância acordava inquietado pelo sussurrar dos juncos - agora fico acordado à noite à espera do vento. * Sim, mas ainda assim, embora as minhas noites de tormento não tenham alcançado nada, eu vou acreditar até ao fim - até nas suas mentiras.
“Sonhei que me guiavas” de Antonio Machado (1875-1939) trad. Bruno M. Silva
Sonhei que me guiavas por uma branca vereda, entre o campo verde, em direcção ao azul das serras, em direcção aos montes azuis, numa manhã serena. Senti a tua mão na minha, a tua mão de companheira, a tua voz de menina no meu ouvido soando como um sino recente, como um sino inaudito na manhã de primavera. Eram a tua voz, a tua mão, em sonhos, tão reais!... Vive, esperança. Quem sabe o que devora a terra!
Poema de Antonio Machado (1875-1939) trad. Bruno M. Silva
E era o demónio dos meus sonhos, o mais belo de todos os anjos. Os seus olhos vitoriosos ardiam como metal, e as chamas que caíam da sua tocha como gotas iluminavam a profunda cadeia da minha alma. "Virás comigo?" - "Não, jamais! Assustam-me os túmulos e cadáveres." Mas a sua mão de ferro segurou-me. "Virás comigo."... E no meu sonho caminhei cego diante da sua tocha rubra. Na cadeia escutei o som de correntes e o alvoroço das feras enjauladas.
Poema de Nun Abutsu (1222-1283) trad. Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Para o orvalho semelhante às joias como para as minhas lágrimas não existe descanso: ambos dispersos no vento de outono na casa de alguém que morreu.
“Coisas”, de Lisel Mueller (1924-2020), trad. Bruno M. Silva
O que aconteceu foi que nos tornámos solitários vivendo entre as coisas, então demos um rosto aos relógios, costas às cadeiras, à mesa quatro pernas robustas para que nunca se fatigasse. Calçámos os sapatos com línguas macias como as nossas e pendurámos badalos dentro dos sinos para que pudéssemos ouvir a sua linguagem emotiva, e como amávamos perfis graciosos a jarra recebeu um lábio, a garrafa um longo, ténue pescoço. Mesmo o que estava para além de nós acabámos por forjar à nossa imagem; demos um coração ao país, um olho à tempestade, uma boca à caverna para que pudéssemos passar em segurança.
“New Heaven and Earth”, de D. H. Lawrence (1885-1930) trad. Bruno M. Silva
II Estava tão farto do mundo, tão exausto de tudo, porque tudo estava manchado de mim mesmo, céus, árvores, flores, pássaros, água, pessoas, casas, ruas, veículos, máquinas, nações, exércitos, guerras, tratados de paz, trabalho, diversão, governo, anarquia, estava tudo manchado de mim mesmo, eu sempre soube porque tudo era eu mesmo. Quando colhia flores, sabia que arrancava a minha própria floração. Quando entrava num comboio, sabia que viajava por minha própria criação. Quando ouvia os canhões de guerra, ouvia a minha própria destruição. Quando via os mortos despedaçados, sabia que era o meu próprio corpo torcido. Tudo isto era eu, eu havia feito tudo na minha própria carne.
“Fadiga”, de D. H. Lawrence (1885-1930), Trad. Bruno M. Silva
A minha alma teve um dia longo e difícil, está fatigada, e procura agora o esquecimento de si mesma. Oh, e no mundo não há lugar onde a alma encontre o seu olvido, a paz que vem depois da escuridão, pois o homem matou o silêncio da terra e destruiu os lugares brandos do esquecimento onde os anjos costumavam pousar. [in Last Poems]
“Eu olho para o mundo”, de Langston Hughes (1902-1967), trad. Bruno M. Silva
Eu olho o mundo Pelos olhos que despertam num rosto negro – E é isto que eu vejo: Este lugar estreito e vedado Que me destinaram. Olho depois os muros absurdos Pelos olhos negros num rosto negro – E é isto que eu sei: Que estes muros que a opressão constrói Terão que ir! Olho para o meu próprio corpo Com olhos já não cegos – E vejo que as minhas mãos podem construir O mundo que existe na minha cabeça. Apressemo-nos então a encontrar, camaradas, O caminho por achar.
“Onde me meto este Janeiro, ó cidade?”, de Ossip Mandelstam, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra
Onde me meto este Janeiro, ó cidade? Louca-desvairada a cidade aberta agarra... Será que me alucinam as portas cerradas? - São de soltar uivos tantas trancas, trincos, barras. Os becos-meias que ladram e mais as caves Das ruas tortas esconsas onde à margem Precipitadamente os marginais se escondem, Donde correndo precipitadamente saem... E para o frenesim escorrego, para o escuro Salpicado de verrugas, até ao gelo Da bomba de água, tropeço no ar morto E as gralhas fogem febris sob o regelo. Uááá! Atrás delas eu grito para as fossas Sei lá de que gelada caixa de madeira: - Preciso de um leitor! médico! conselheiro! Duma conversa nas escadas espinhosas! [1 de Fevereiro de 1937] (in Guarda Minha Fala Para Sempre, ed. Assírio & Alvim)