“Espelho”, de Tada Chimako (1930-2003) trad. Bruno M. Silva

A minha imagem é sempre um pouco mais alta do que eu.
Ri-se sempre um pouco mais tarde.
Eu coro como um caranguejo cozido,
e recorto uma projecção de mim mesma com a tesoura das unhas.

Quando deixo que os meus lábios se aproximem do espelho,
ele distorce, e eu desapareço de vista,
como um nobre desaparece atrás do seu escudo,
ou um guarda por trás da sua tatuagem.

O meu espelho é o cemitério de sorrisos.
Viajante, quando vieres a Lakaidaimon,
diz-lhes que aqui se ergue um túmulo,
pintado de branco com maquilhagem,
com apenas o vento soprando no espelho. 

Cinco Poemas de Fujiwara no Tameie [1198-1275], trad. Bruno M. Silva

As pegadas desapareceram
do meu jardim solitário - 
a cor do musgo
está agora esquecida
sob as pétalas caídas.

*

Um cuco canta - 
mas a sua voz não anuncia
o início da manhã.
Grande parte da noite está ainda
entregue à vigília de um velho.

*

O que hei-de pensar?
Como a maré que se recolhe
na baía de Namuri,
aquele que eu amo
afasta-se de mim.

*

Na minha infância
acordava inquietado
pelo sussurrar dos juncos - 
agora fico acordado à noite
à espera do vento.

*

Sim, mas ainda assim,
embora as minhas noites de tormento
não tenham alcançado nada,
eu vou acreditar até ao fim - 
até nas suas mentiras.

“Sonhei que me guiavas” de Antonio Machado (1875-1939) trad. Bruno M. Silva

Sonhei que me guiavas
por uma branca vereda,
entre o campo verde,
em direcção ao azul das serras,
em direcção aos montes azuis,
numa manhã serena.

Senti a tua mão na minha,
a tua mão de companheira,
a tua voz de menina no meu ouvido
soando como um sino recente,
como um sino inaudito
na manhã de primavera.
Eram a tua voz, a tua mão,
em sonhos, tão reais!...
Vive, esperança. Quem sabe
o que devora a terra!

Poema de Antonio Machado (1875-1939) trad. Bruno M. Silva

E era o demónio dos meus sonhos, o mais belo
de todos os anjos. Os seus olhos vitoriosos
ardiam como metal,
e as chamas que caíam
da sua tocha como gotas
iluminavam a profunda cadeia da minha alma.

"Virás comigo?" - "Não, jamais! Assustam-me 
os túmulos e cadáveres."
Mas a sua mão de ferro
segurou-me.

"Virás comigo."... E no meu sonho caminhei
cego diante da sua tocha rubra.
Na cadeia escutei o som de correntes
e o alvoroço das feras enjauladas.

“Coisas”, de Lisel Mueller (1924-2020), trad. Bruno M. Silva

O que aconteceu foi que nos tornámos solitários
vivendo entre as coisas,
então demos um rosto aos relógios,
costas às cadeiras,
à mesa quatro pernas robustas
para que nunca se fatigasse.

Calçámos os sapatos com línguas
macias como as nossas
e pendurámos badalos dentro dos sinos
para que pudéssemos ouvir
a sua linguagem emotiva,

e como amávamos perfis graciosos
a jarra recebeu um lábio,
a garrafa um longo, ténue pescoço.

Mesmo o que estava para além de nós
acabámos por forjar à nossa imagem;
demos um coração ao país,
um olho à tempestade,
uma boca à caverna
para que pudéssemos passar em segurança.

“New Heaven and Earth”, de D. H. Lawrence (1885-1930) trad. Bruno M. Silva

II

Estava tão farto do mundo,
tão exausto de tudo,
porque tudo estava manchado de mim mesmo,
céus, árvores, flores, pássaros, água,
pessoas, casas, ruas, veículos, máquinas,
nações, exércitos, guerras, tratados de paz,
trabalho, diversão, governo, anarquia,
estava tudo manchado de mim mesmo, eu sempre soube
porque tudo era eu mesmo.

Quando colhia flores, sabia que arrancava a minha própria floração.
Quando entrava num comboio, sabia que viajava por minha própria criação.
Quando ouvia os canhões de guerra, ouvia a minha própria destruição.
Quando via os mortos despedaçados, sabia que era o meu próprio corpo torcido.
Tudo isto era eu, eu havia feito tudo na minha própria carne.

“Fadiga”, de D. H. Lawrence (1885-1930), Trad. Bruno M. Silva

A minha alma teve um dia longo e difícil,
está fatigada,
e procura agora o esquecimento de si mesma.

Oh, e no mundo
não há lugar onde a alma encontre o seu olvido,
a paz que vem depois da escuridão,
pois o homem matou o silêncio da terra
e destruiu os lugares brandos do esquecimento
onde os anjos costumavam pousar.

[in Last Poems]

“Eu olho para o mundo”, de Langston Hughes (1902-1967), trad. Bruno M. Silva

Eu olho o mundo
Pelos olhos que despertam num rosto negro – 
E é isto que eu vejo:
Este lugar estreito e vedado
Que me destinaram.

Olho depois os muros absurdos
Pelos olhos negros num rosto negro – 
E é isto que eu sei:
Que estes muros que a opressão constrói
Terão que ir!

Olho para o meu próprio corpo
Com olhos já não cegos – 
E vejo que as minhas mãos podem construir
O mundo que existe na minha cabeça.
Apressemo-nos então a encontrar, camaradas,
O caminho por achar.

“Onde me meto este Janeiro, ó cidade?”, de Ossip Mandelstam, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra

Onde me meto este Janeiro, ó cidade?
Louca-desvairada a cidade aberta agarra...
Será que me alucinam as portas cerradas? - 
São de soltar uivos tantas trancas, trincos, barras.

Os becos-meias que ladram e mais as caves
Das ruas tortas esconsas onde à margem
Precipitadamente os marginais se escondem,
Donde correndo precipitadamente saem...

E para o frenesim escorrego, para o escuro
Salpicado de verrugas, até ao gelo
Da bomba de água, tropeço no ar morto
E as gralhas fogem febris sob o regelo.

Uááá! Atrás delas eu grito para as fossas
Sei lá de que gelada caixa de madeira:
- Preciso de um leitor! médico! conselheiro!
Duma conversa nas escadas espinhosas!


[1 de Fevereiro de 1937]

(in Guarda Minha Fala Para Sempre, ed. Assírio & Alvim)