“Espelho”, de Tada Chimako (1930-2003) trad. Bruno M. Silva

A minha imagem é sempre um pouco mais alta do que eu.
Ri-se sempre um pouco mais tarde.
Eu coro como um caranguejo cozido,
e recorto uma projecção de mim mesma com a tesoura das unhas.

Quando deixo que os meus lábios se aproximem do espelho,
ele distorce, e eu desapareço de vista,
como um nobre desaparece atrás do seu escudo,
ou um guarda por trás da sua tatuagem.

O meu espelho é o cemitério de sorrisos.
Viajante, quando vieres a Lakaidaimon,
diz-lhes que aqui se ergue um túmulo,
pintado de branco com maquilhagem,
com apenas o vento soprando no espelho. 

“Coisas”, de Lisel Mueller (1924-2020), trad. Bruno M. Silva

O que aconteceu foi que nos tornámos solitários
vivendo entre as coisas,
então demos um rosto aos relógios,
costas às cadeiras,
à mesa quatro pernas robustas
para que nunca se fatigasse.

Calçámos os sapatos com línguas
macias como as nossas
e pendurámos badalos dentro dos sinos
para que pudéssemos ouvir
a sua linguagem emotiva,

e como amávamos perfis graciosos
a jarra recebeu um lábio,
a garrafa um longo, ténue pescoço.

Mesmo o que estava para além de nós
acabámos por forjar à nossa imagem;
demos um coração ao país,
um olho à tempestade,
uma boca à caverna
para que pudéssemos passar em segurança.

“New Heaven and Earth”, de D. H. Lawrence (1885-1930) trad. Bruno M. Silva

II

Estava tão farto do mundo,
tão exausto de tudo,
porque tudo estava manchado de mim mesmo,
céus, árvores, flores, pássaros, água,
pessoas, casas, ruas, veículos, máquinas,
nações, exércitos, guerras, tratados de paz,
trabalho, diversão, governo, anarquia,
estava tudo manchado de mim mesmo, eu sempre soube
porque tudo era eu mesmo.

Quando colhia flores, sabia que arrancava a minha própria floração.
Quando entrava num comboio, sabia que viajava por minha própria criação.
Quando ouvia os canhões de guerra, ouvia a minha própria destruição.
Quando via os mortos despedaçados, sabia que era o meu próprio corpo torcido.
Tudo isto era eu, eu havia feito tudo na minha própria carne.

“Fadiga”, de D. H. Lawrence (1885-1930), Trad. Bruno M. Silva

A minha alma teve um dia longo e difícil,
está fatigada,
e procura agora o esquecimento de si mesma.

Oh, e no mundo
não há lugar onde a alma encontre o seu olvido,
a paz que vem depois da escuridão,
pois o homem matou o silêncio da terra
e destruiu os lugares brandos do esquecimento
onde os anjos costumavam pousar.

[in Last Poems]

“Eu olho para o mundo”, de Langston Hughes (1902-1967), trad. Bruno M. Silva

Eu olho o mundo
Pelos olhos que despertam num rosto negro – 
E é isto que eu vejo:
Este lugar estreito e vedado
Que me destinaram.

Olho depois os muros absurdos
Pelos olhos negros num rosto negro – 
E é isto que eu sei:
Que estes muros que a opressão constrói
Terão que ir!

Olho para o meu próprio corpo
Com olhos já não cegos – 
E vejo que as minhas mãos podem construir
O mundo que existe na minha cabeça.
Apressemo-nos então a encontrar, camaradas,
O caminho por achar.

“Onde me meto este Janeiro, ó cidade?”, de Ossip Mandelstam, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra

Onde me meto este Janeiro, ó cidade?
Louca-desvairada a cidade aberta agarra...
Será que me alucinam as portas cerradas? - 
São de soltar uivos tantas trancas, trincos, barras.

Os becos-meias que ladram e mais as caves
Das ruas tortas esconsas onde à margem
Precipitadamente os marginais se escondem,
Donde correndo precipitadamente saem...

E para o frenesim escorrego, para o escuro
Salpicado de verrugas, até ao gelo
Da bomba de água, tropeço no ar morto
E as gralhas fogem febris sob o regelo.

Uááá! Atrás delas eu grito para as fossas
Sei lá de que gelada caixa de madeira:
- Preciso de um leitor! médico! conselheiro!
Duma conversa nas escadas espinhosas!


[1 de Fevereiro de 1937]

(in Guarda Minha Fala Para Sempre, ed. Assírio & Alvim)

“Eu torno-me cada vez mais dócil, de Anna Akhmátova, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra

Eu torno-me cada vez mais dócil,
e tu sempre misterioso e novo,
mas teu amor, meu severo amigo,
é uma prova de ferro e fogo.

Proíbes-me de cantar, sorrir,
e há muito de rezar,
desde que não me aparte de ti,
todo o resto me é igual!

Assim, alheia à terra e ao céu,
já não canto, apenas vivo.
Minha alma livre arrancaste
do inferno e do paraíso.

[1917]

(in Só o Sangue Cheira a Sangue, ed. Assírio & Alvim)

“entrando no sul”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva

vesti o casaco de minha mãe.
é quente e familiar
como velho pêlo
e posso ouvir vozes sussurrantes
através dele.    demasiados
animais morreram
para que fosse feito.   as mangas
desenrolam-se em direcção às mãos
como cordas.  eu vou usá-lo
porque ela o amou
mas o sangue de que foi criado acumula-se
sobre os meus ombros
pesado escuro e vivo 

“Campo”, de Antonio Machado (1875-1939), trad. Bruno M. Silva

A tarde morre
como uma humilde lareira que se apaga.
  
Ali, sobre os montes,
restam apenas algumas brasas.
  
E aquela árvore sobre o caminho branco, quebrada,
faz-te chorar de piedade.
  
Dois ramos no tronco desfeito, e uma
folha, gasta e negra, em cada ramo!
  
Choras?... Entre os álamos de ouro,
distante, a sombra do amor espera por ti. 

“a morte de thelma sayles”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva

não deixo vestígios para que os meus amores vivos
não me possam seguir. junto ao rio
a maioria volta para trás, as suas almas tremem,
mas a minha menina fica sozinha na margem
e olha. arranco o meu coração do bolso
e atiro-o. sorrio ao vê-la apanhar tudo
o que alguma vez irá apanhar e voltar para casa
e para os seus filhos. a maternidade
tornou-o forte, sussurro ao seu ouvido
por entre as folhas.