vesti o casaco de minha mãe. é quente e familiar como velho pêlo e posso ouvir vozes sussurrantes através dele. demasiados animais morreram para que fosse feito. as mangas desenrolam-se em direcção às mãos como cordas. eu vou usá-lo porque ela o amou mas o sangue de que foi criado acumula-se sobre os meus ombros pesado escuro e vivo
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“a morte de thelma sayles”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
não deixo vestígios para que os meus amores vivos não me possam seguir. junto ao rio a maioria volta para trás, as suas almas tremem, mas a minha menina fica sozinha na margem e olha. arranco o meu coração do bolso e atiro-o. sorrio ao vê-la apanhar tudo o que alguma vez irá apanhar e voltar para casa e para os seus filhos. a maternidade tornou-o forte, sussurro ao seu ouvido por entre as folhas.
“confissão”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
pai não sou semelhante à fé necessária. eu duvido. tenho as certezas de uma mulher; corpos são-me arrancados, empurrados para dentro de mim. osso e carne é o que conheço. pai os anjos dizem que não têm asas. acordei uma manhã sentindo como os poderia ver. podia distinguir as suas sombras na sombra. eu não sou semelhante à fé necessária. pai vejo a tua mãe hirta sem ombros sem sapatos a teu lado. ouço-a sussurrar-te verdades que eu não posso conhecer. pai eu duvido. pai quais são as verdadeiras certezas? a tua mãe fala de amor. os anjos dizem que não têm asas. não sou semelhante à fé necessária. procuro fugir de tão surpreendente presença; os anjos correm diante de mim como uma tocha.
“poema para o meu útero”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
tu útero tu foste paciente como uma meia enquanto eu guardei em ti os meus filhos vivos e mortos e agora eles querem-te arrancar como meias inúteis para onde eu vou para onde é que eu vou velha menina sem ti útero minha pegada ensanguentada minha cozinha de estrogénio meu saco negro de desejo para onde posso eu ir descalça sem ti para onde podes tu ir sem mim (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)
“língua materna: à criança acabada de nascer”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
se eu fosse eloquente na tua língua tentar-te-ia dizer como é quando alguma coisa difícil te ama, como é quando começas a amá-la de volta, e como isto pode custar-te tudo.
“poema no meu quadragésimo aniversário para a minha mãe que morreu jovem”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
bem já quase cheguei ao lugar onde caíste tropeçando no arame na quadragésima-quarta volta e eu decidi continuar a correr, a cabeça erguida, o corpo vigilante, os dedos apontados como dardos ao primeiro lugar, por isso talvez nem repare no fino arame que agora me envolve os tornozelos mas estou a tentar chegar longe mamã, correndo como o diabo e se eu cair caí (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)
“uma mulher que ame”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
uma mulher que ame homens impossíveis senta-se muito tempo fechada olhando as janelas ela não tem irmão que compreenda onde ela não vai as irmãs oferecem-lhe os seus próprios seios, vasos cheios e cremosos mas ela não pode beber porque ela ama homens impossíveis uma mulher que ame homens impossíveis à noite ouve música que não pode cantar bebe bom xerez engole as notas oxidadas na garganta mas ela não enche ela já está cheia de amor por homens impossíveis uma mulher que ame homens impossíveis promete todas as manhãs que vai tomar esse dia nas suas mãos despi-lo deitar-se com ele aprender a amá-lo mas não o faz ela passa por estranhos passa por família esquece as suas marcas os seus aniversários lembra-se apenas dos nomes das manchas dos homens impossíveis (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)
“a lição das folhas em queda”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
as folhas acreditam que o desprendimento é amor que o amor é fé que a fé é graça que a graça é deus eu concordo com as folhas (a partir da edição The Collected Poems of Lucille Clifton 1965-2010, Boa Editions Ltd)