II Estava tão farto do mundo, tão exausto de tudo, porque tudo estava manchado de mim mesmo, céus, árvores, flores, pássaros, água, pessoas, casas, ruas, veículos, máquinas, nações, exércitos, guerras, tratados de paz, trabalho, diversão, governo, anarquia, estava tudo manchado de mim mesmo, eu sempre soube porque tudo era eu mesmo. Quando colhia flores, sabia que arrancava a minha própria floração. Quando entrava num comboio, sabia que viajava por minha própria criação. Quando ouvia os canhões de guerra, ouvia a minha própria destruição. Quando via os mortos despedaçados, sabia que era o meu próprio corpo torcido. Tudo isto era eu, eu havia feito tudo na minha própria carne.
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“Fadiga”, de D. H. Lawrence (1885-1930), Trad. Bruno M. Silva
A minha alma teve um dia longo e difícil, está fatigada, e procura agora o esquecimento de si mesma. Oh, e no mundo não há lugar onde a alma encontre o seu olvido, a paz que vem depois da escuridão, pois o homem matou o silêncio da terra e destruiu os lugares brandos do esquecimento onde os anjos costumavam pousar. [in Last Poems]
“Eu olho para o mundo”, de Langston Hughes (1902-1967), trad. Bruno M. Silva
Eu olho o mundo Pelos olhos que despertam num rosto negro – E é isto que eu vejo: Este lugar estreito e vedado Que me destinaram. Olho depois os muros absurdos Pelos olhos negros num rosto negro – E é isto que eu sei: Que estes muros que a opressão constrói Terão que ir! Olho para o meu próprio corpo Com olhos já não cegos – E vejo que as minhas mãos podem construir O mundo que existe na minha cabeça. Apressemo-nos então a encontrar, camaradas, O caminho por achar.
“Onde me meto este Janeiro, ó cidade?”, de Ossip Mandelstam, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra
Onde me meto este Janeiro, ó cidade? Louca-desvairada a cidade aberta agarra... Será que me alucinam as portas cerradas? - São de soltar uivos tantas trancas, trincos, barras. Os becos-meias que ladram e mais as caves Das ruas tortas esconsas onde à margem Precipitadamente os marginais se escondem, Donde correndo precipitadamente saem... E para o frenesim escorrego, para o escuro Salpicado de verrugas, até ao gelo Da bomba de água, tropeço no ar morto E as gralhas fogem febris sob o regelo. Uááá! Atrás delas eu grito para as fossas Sei lá de que gelada caixa de madeira: - Preciso de um leitor! médico! conselheiro! Duma conversa nas escadas espinhosas! [1 de Fevereiro de 1937] (in Guarda Minha Fala Para Sempre, ed. Assírio & Alvim)
“Eu torno-me cada vez mais dócil, de Anna Akhmátova, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra
Eu torno-me cada vez mais dócil, e tu sempre misterioso e novo, mas teu amor, meu severo amigo, é uma prova de ferro e fogo. Proíbes-me de cantar, sorrir, e há muito de rezar, desde que não me aparte de ti, todo o resto me é igual! Assim, alheia à terra e ao céu, já não canto, apenas vivo. Minha alma livre arrancaste do inferno e do paraíso. [1917] (in Só o Sangue Cheira a Sangue, ed. Assírio & Alvim)
“Dores de Parto”, de Yosano Akiko (1878-1942), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Kenneth Rexroth e Ikuko Atsumi
Hoje estou doente, doente no meu corpo, de olhos abertos, emudecida, estou deitada na cama de parto. Porque é que eu, tão acostumada à proximidade da morte, da dor, do sangue, do grito, agora tremo incontrolavelmente de temor? Um jovem e agradável médico tentou reconfortar-me, e falou sobre a alegria de dar à luz. Uma vez que eu sei mais do que ele sobre esta matéria, de que me serve o seu tagarelar? Conhecimento não é realidade. A experiência pertence ao passado Que se calem então os que carecem de urgência Que os observadores se contentem com observar. Eu estou sozinha, perfeitamente, inteiramente, absolutamente entregue a mim mesma, mordendo os meus lábios, segurando o meu corpo rígido, servindo um fado inexorável. Existe apenas uma verdade. Darei à luz uma criança, a verdade movendo-se do meu interior para fora. Nem bom nem mau; real, sem que haja nisto falsidade. Com as primeiras dores de parto, subitamente o sol empalidece. O mundo indiferente fica estranhamente calmo. Eu estou sozinha. É sozinha que eu sou.
“entrando no sul”, de Lucille Clifton (1936-2010), trad. Bruno M. Silva
vesti o casaco de minha mãe. é quente e familiar como velho pêlo e posso ouvir vozes sussurrantes através dele. demasiados animais morreram para que fosse feito. as mangas desenrolam-se em direcção às mãos como cordas. eu vou usá-lo porque ela o amou mas o sangue de que foi criado acumula-se sobre os meus ombros pesado escuro e vivo
“Campo”, de Antonio Machado (1875-1939), trad. Bruno M. Silva
A tarde morre como uma humilde lareira que se apaga. Ali, sobre os montes, restam apenas algumas brasas. E aquela árvore sobre o caminho branco, quebrada, faz-te chorar de piedade. Dois ramos no tronco desfeito, e uma folha, gasta e negra, em cada ramo! Choras?... Entre os álamos de ouro, distante, a sombra do amor espera por ti.
“a morte de thelma sayles”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
não deixo vestígios para que os meus amores vivos não me possam seguir. junto ao rio a maioria volta para trás, as suas almas tremem, mas a minha menina fica sozinha na margem e olha. arranco o meu coração do bolso e atiro-o. sorrio ao vê-la apanhar tudo o que alguma vez irá apanhar e voltar para casa e para os seus filhos. a maternidade tornou-o forte, sussurro ao seu ouvido por entre as folhas.
“confissão”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
pai não sou semelhante à fé necessária. eu duvido. tenho as certezas de uma mulher; corpos são-me arrancados, empurrados para dentro de mim. osso e carne é o que conheço. pai os anjos dizem que não têm asas. acordei uma manhã sentindo como os poderia ver. podia distinguir as suas sombras na sombra. eu não sou semelhante à fé necessária. pai vejo a tua mãe hirta sem ombros sem sapatos a teu lado. ouço-a sussurrar-te verdades que eu não posso conhecer. pai eu duvido. pai quais são as verdadeiras certezas? a tua mãe fala de amor. os anjos dizem que não têm asas. não sou semelhante à fé necessária. procuro fugir de tão surpreendente presença; os anjos correm diante de mim como uma tocha.