“Bem dentro de nós”, de Vasko Popa (1922 – 1991), trad. Bruno M. Silva

I

Erguemos as mãos
A rua sobe até ao céu
Baixamos os olhos
Os telhados pendem para o a terra

De cada dor
Que não mencionamos
Um castanheiro cresce
E misterioso permanece por trás de nós

De cada esperança
Que nutrimos
Uma estrela levanta-se
E move-se inatingível à nossa frente

Ouves o tiro
Que voa entre as nossas cabeças
Ouves o tiro
Que guarda o nosso beijo


(a partir da versão inglesa de Anne Pennington, Selected Poems, Penguin)

“Silêncio”, de Giuseppe Ungaretti (1888-1970), trad. Bruno M. Silva

Mariano, 27 de Junho 1916

Conheço uma cidade
que todos os dias se enche de luz
e nesse instante tudo se encanta

Eu parti certa noite

No meu coração o estremecer das cigarras
continuou

Da branca
embarcação
eu vi
a minha cidade desaparecer
e deixar
um enlace de luzes
por um momento
no ar turvo
suspensas


(a partir da versão inglesa de Patrick Creagh, Selected Poems, Penguin)

“Uma cabeça desabrigada”, de Vasko Popa (1922 – 1991), trad. Bruno M. Silva

Uma cabeça decepada
Uma cabeça com uma flor entre os dentes
Errante circunda a terra

O sol encontra-a
Faz-lhe uma vénia
E segue o seu caminho

A lua encontra-a
A ela sorri
E não pára de seguir o seu caminho

Por que rosna ela à terra
Não poderia voltar 
Ou partir para sempre

Os seus floridos lábios saberão


(a partir da versão inglesa de Anne Pennington, Selected Poems, Penguin)

Dois poemas de Stephen Crane (1871-1900). Tradução de Bruno M. Silva

No deserto
 
No deserto
Vi uma criatura, despida, bestial,
Que, aninhada sobre o solo,
Segurava nas mãos o seu coração
E dele comia.
Eu disse: “É bom, amigo?”
“É amargo — amargo,” ele respondeu;

“Mas eu gosto
Porque é amargo,
E porque é o meu coração.”


*

Eu vi um homem perseguindo o horizonte
 
Eu vi um homem perseguindo o horizonte;
Às voltas corriam e corriam.
Isto perturbou-me;
Eu aproximei-me do homem.
“É inútil,” disse-lhe,
“Nunca poderás —"
 
“Mentes,” gritou ele,
E continuou a correr.

Quatro poemas de Kyōgoku Tamekane (1254-1332). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter

 Fascinado pela lua
ele passa pela estalagem
onde deveria dormir essa noite.
O viajante nocturno
atravessa já o caminho de amanhã.
 
*
 
Às voltas o tempo torna
e então talvez de novo
eu encontre a primavera.
Mas este dia, esta noite –
isto nunca voltará.
 
*
 
No meu coração deposito
a cor das ervas e das árvores
que agora contemplo –
para que pelo menos aí
a sua imagem fique comigo.
 
*
 
A tristeza das coisas
é algo sem cor –
como quando ao anoitecer
o outono chega pairando
nas plumas dos miscanthus.

“Sozinho com o seu trabalho”, de Yannis Ritsos (1909 – 1990), trad. Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Nikos Stangos

 Ele cavalgou sozinho toda a noite, assustado, impiedosamente esporeando
as costelas do seu cavalo. Eles estarão à sua espera, foi-lhe dito, que viesse sem falta;
havia grande urgência. Quando chegou de madrugada,
ninguém o esperava, ninguém lá estava. Ele procurou.
Casas desoladas, trancadas. Dormiam.
Ele ouviu, perto, o seu cavalo, ofegando –
espuma na sua boca, feridas nas costelas e as costas laceradas.
Ele abraçou-se ao pescoço do cavalo e chorou.
Os olhos do cavalo, grandes, negros, moribundos,
eram duas torres, as suas, distantes, numa paisagem onde chovia.

“Fala”, de Faiz Ahmad Faiz (1911 – 1984), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Baran Farooqi

 Fala, pois os teus lábios são livres
Fala, pois a tua língua ainda te pertence
O teu corpo erguido ainda é teu
Fala, pois a tua alma ainda é tua
Olha, como na loja do ferreiro
As brasas estão quentes, o ferro lampeja
As bocas das fechaduras se abrem
As correntes estendem o seu alcance
Fala, pois o pouco tempo que tens é suficiente
Antes da morte do corpo e da língua
Fala, pois a verdade ainda existe
Fala, diz tudo o que há para ser dito

“Ressurreição”, de Yoshihara Sachiko (1932- 2002). Tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Kenneth Rexroth e Ikuko Atsumi

 Matar o amor para que não me mate a mim, isso é preservação
A pistola apontada a ti volta-se para o meu coração
Pecado quente e frio castigo
Eu abro-me a partir daí, e talvez desse
Assombroso buraco a morte silenciosamente se espalhe
Os sons gotejantes do mundo desaparecem depois
E na longa longa cela solitária talvez seja
Uma morte inquieta uma morte em chamas uma vida em chamas
A aranha molhada à chuva faz a teia com o seu suor
E gradualmente afina e espalha o reluzente e oval Zero