A noite chega e depois da noite, escuridão depois da escuridão olhos mãos e respiração, respiração, respiração e o som da água que cai ping ping ping da torneira depois dois pontos vermelhos de dois cigarros acesos o bater do relógio e dois corações e duas solidões
“Mantendo as coisas inteiras”, de Mark Strand (1934-2014) trad. Bruno M. Silva
Num campo eu sou a ausência de campo. É sempre este o caso. Onde quer que vá sou aquilo que falta. Quando caminho aparto o ar e o ar move-se sempre de forma a preencher o espaço onde o meu corpo esteve. Todos temos motivos para nos movermos. Eu avanço para manter as coisas inteiras
“Medo” de Charles Simic (1938-) trad. Bruno M. Silva
O medo é passado de homem para homem Inconscientemente, Como uma folha passa o seu estremecimento A outra. De repente toda a árvore treme E não há sinal do vento.
“E devo então viver contigo, Dor”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva
E devo então viver contigo, Dor, Toda a minha vida? - partilhar o meu fogo, a minha cama, Partilhar – pior de tudo! - a mesma cabeça? - E quando me alimento, alimentar-te a ti também? Que assim seja, então, se é esta a minha verdade: Jantemos, camarada, e que sejamos alimentadas; Eu não posso morrer até que tu estejas morta, E, contigo viva, posso viver a vida até ao fim. Ainda assim feres-me, ingrata convidada, Espiando os meus ofícios ardentes Com olhar gelado; roubando-me as noites de descanso; Tornando difíceis os trabalhos outrora simples. Morrerás comigo: mas eu irei, no melhor dos casos, Perdoar-te um pouco, por tudo o que me fizeste.
“Esqueci-me dos lábios que beijei, e onde, e porquê”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva
Esqueci-me dos lábios que beijei, e onde, e porquê, Esqueci-me, e que braços pousaram sob A minha cabeça até de manhã; mas a chuva Está cheia de fantasmas esta noite, que batem e suspiram Contra o vidro à espera de uma resposta, E no meu coração agita-se uma dor muda Pelos homens esquecidos que não voltarão A lamentar-se à meia noite com um gemido. Eu sou como a árvore que no inverno se sustenta, E não sabe que pássaros a abandonaram um a um, Mas sabe que os seus ramos estão mais silenciosos agora: Não sei que amores vieram e se foram, Apenas sei que o verão cantou em mim um pouco, e que agora não canta mais.
“O amor não é tudo” de Edna St. Vincent Millay (1892-1950) trad. Bruno M. Silva
O amor não é tudo: não é comida nem bebida Nem sono nem um telhado contra a chuva; Não é escombro sobre o mar para quem se afunda E flutua e afunda e flutua e afunda outra vez; O amor não é capaz de encher de ar o pulmão ferido, Nem de limpar o sangue, ou sarar o osso partido; E no entanto, enquanto eu falo, Muitos homens se acercam da morte pela falta de amor. Pode muito bem ser que numa hora tenebrosa, Presa à dor e implorando libertação, Ou acometida por forças além da minha vontade, Eu pudesse ser levada a trocar o teu amor pela paz, Ou a trocar a memória desta noite por comida. Poderia muito bem ser. Mas eu não creio que o fizesse.
“O tempo não traz alívio; mentiram-me todos”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950) trad. Bruno M. Silva
O tempo não traz alívio; mentiram-me todos Os que disseram que o tempo acalmaria a minha dor! Sinto a sua falta no som da chuva; Quero-o quando a maré recua; A neve antiga derrete de todas as colinas, E as folhas passadas tornam-se fumo em cada caminho; Mas este amor amargo permanece sempre Amontoado no meu coração, e os meus sentimentos sustentam-no. Há cem lugares que temo visitar, Tão carregados da sua memória. E quando entro aliviada num lugar sossegado Que nunca conheceu o seu pé ou iluminou o seu rosto Eu digo, "Não existe memória dele aqui!" E ali permaneço, fulminada, recordando-me dele.
“Vida dos Poetas” de José Emilio Pacheco (1939-2014) trad. Bruno M. Silva
Na poesia não há final feliz. Os poetas acabam por viver a sua loucura. E são retalhados como gado (aconteceu com Darío). Ou então são apedrejados e acabam por se atirar ao mar ou com cristais de cianeto na boca. Ou mortos pelo álcool, drogas, miséria. Ou pior: poetas oficiais, amargos habitantes de um túmulo chamado Obras Completas.
“O inefável”, de Delmira Agustini (1886-1914) trad. Bruno M. Silva
Eu morro estranhamente… Não me mata a Vida, Não me mata a Morte, não me mata o Amor; Morro de um pensamento mudo como uma ferida… Não tereis sentido nunca a estranha dor De um pensamento imenso que se prende à vida, Devorando alma e carne, e que não chega a dar flor? Nunca levastes dentro uma estrela adormecida Que vos queimava inteiros sem nunca luzir?… Cume dos Martírios!… Levar eternamente, Desolada e estéril, a trágica semente Cravada nas entranhas como um dente feroz!… Mas um dia arrancá-la em flor, Milagrosa, inviolável!… Ah, maior não seria Ter entre as mãos a cabeça de Deus! [de Cantos de la mañana 1910]