“Onde me meto este Janeiro, ó cidade?”, de Ossip Mandelstam, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra

Onde me meto este Janeiro, ó cidade?
Louca-desvairada a cidade aberta agarra...
Será que me alucinam as portas cerradas? - 
São de soltar uivos tantas trancas, trincos, barras.

Os becos-meias que ladram e mais as caves
Das ruas tortas esconsas onde à margem
Precipitadamente os marginais se escondem,
Donde correndo precipitadamente saem...

E para o frenesim escorrego, para o escuro
Salpicado de verrugas, até ao gelo
Da bomba de água, tropeço no ar morto
E as gralhas fogem febris sob o regelo.

Uááá! Atrás delas eu grito para as fossas
Sei lá de que gelada caixa de madeira:
- Preciso de um leitor! médico! conselheiro!
Duma conversa nas escadas espinhosas!


[1 de Fevereiro de 1937]

(in Guarda Minha Fala Para Sempre, ed. Assírio & Alvim)

“Eu torno-me cada vez mais dócil, de Anna Akhmátova, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra

Eu torno-me cada vez mais dócil,
e tu sempre misterioso e novo,
mas teu amor, meu severo amigo,
é uma prova de ferro e fogo.

Proíbes-me de cantar, sorrir,
e há muito de rezar,
desde que não me aparte de ti,
todo o resto me é igual!

Assim, alheia à terra e ao céu,
já não canto, apenas vivo.
Minha alma livre arrancaste
do inferno e do paraíso.

[1917]

(in Só o Sangue Cheira a Sangue, ed. Assírio & Alvim)