vesti o casaco de minha mãe. é quente e familiar como velho pêlo e posso ouvir vozes sussurrantes através dele. demasiados animais morreram para que fosse feito. as mangas desenrolam-se em direcção às mãos como cordas. eu vou usá-lo porque ela o amou mas o sangue de que foi criado acumula-se sobre os meus ombros pesado escuro e vivo
Mês: Janeiro 2021
“Campo”, de Antonio Machado (1875-1939), trad. Bruno M. Silva
A tarde morre como uma humilde lareira que se apaga. Ali, sobre os montes, restam apenas algumas brasas. E aquela árvore sobre o caminho branco, quebrada, faz-te chorar de piedade. Dois ramos no tronco desfeito, e uma folha, gasta e negra, em cada ramo! Choras?... Entre os álamos de ouro, distante, a sombra do amor espera por ti.
“a morte de thelma sayles”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
não deixo vestígios para que os meus amores vivos não me possam seguir. junto ao rio a maioria volta para trás, as suas almas tremem, mas a minha menina fica sozinha na margem e olha. arranco o meu coração do bolso e atiro-o. sorrio ao vê-la apanhar tudo o que alguma vez irá apanhar e voltar para casa e para os seus filhos. a maternidade tornou-o forte, sussurro ao seu ouvido por entre as folhas.
“confissão”, de Lucille Clifton (1936-2010), tradução de Bruno M. Silva
pai não sou semelhante à fé necessária. eu duvido. tenho as certezas de uma mulher; corpos são-me arrancados, empurrados para dentro de mim. osso e carne é o que conheço. pai os anjos dizem que não têm asas. acordei uma manhã sentindo como os poderia ver. podia distinguir as suas sombras na sombra. eu não sou semelhante à fé necessária. pai vejo a tua mãe hirta sem ombros sem sapatos a teu lado. ouço-a sussurrar-te verdades que eu não posso conhecer. pai eu duvido. pai quais são as verdadeiras certezas? a tua mãe fala de amor. os anjos dizem que não têm asas. não sou semelhante à fé necessária. procuro fugir de tão surpreendente presença; os anjos correm diante de mim como uma tocha.
Dois poemas de Fujiwara no Ietaka (1158-1237), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Ainda agora o ano começou a florir. Como pode ser, então, que destas laranjas se desprenda um aroma tão antigo? * Todas as coisas encontram o seu fim – e então o dia procura amanhecer com os sinos da manhã. Mas a longa noite persiste com a lua ainda no céu.
Poema de Nun Abutsu (1222-1283), tradução de Bruno M. Silva a partir da versão inglesa de Steven D. Carter
Em uma outra vida quem me prendeu a este destino? – à angústia de viver sem ninguém para desatar o meu vestido.
“Cisnes Selvagens”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva
Olhei o meu coração enquanto os cisnes selvagens sobrevoavam. E o que vi que ainda não vira antes? Apenas uma questão a menos ou a mais; Nada que coincidisse com o voo de aves selvagens. Coração fatigado, vivendo e morrendo sempre, Casa sem ar, eu abandono-te e tranco a tua porta. Cisnes selvagens, atravessem a cidade, atravessem A cidade de novo, arrastando as pernas e bramindo.
“Ebb”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva
Eu sei como é o meu coração Desde que o teu amor morreu: É como uma margem oca Guardando uma pequena poça Lá deixada pela maré, Uma pequena poça morna Secando-se desde as margens.
“Lamento”, de Edna St. Vincent Millay (1892-1950), trad. Bruno M. Silva
Ouçam, filhos: O vosso pai está morto. Dos seus velhos casacos Farei casaquinhos para vocês; Farei das suas velhas calças Calças mais pequenas. Nos seus bolsos estarão Coisas que costumava guardar, Chaves e moedas Cobertas de tabaco; O Dan ficará com as moedas Para guardar no banco; A Anne ficará com as chaves Para fazer um belo som com elas. A vida deve continuar, E os mortos serem esquecidos; A vida deve continuar, Embora bons homens morram; Anne, come o teu pequeno-almoço; Dan, toma o remédio; A vida deve continuar; Às vezes esqueço porquê.