“Trinta Anos”, de Bruno M. Silva

Suponhamos que nada se sucede como esperavas.
Não te casas, não tens filhos,
o mistério não se acumula
e à tua volta cresce um dissimulado
vazio
a que te habituaste com os anos,
como água
que esfria em torno do teu corpo,
do corpo dos mortos, das flores de plástico.

Logicamente envelheces
e entendes necessário o ódio
para tamanha solidão.

No suceder das noites
os copos estalam sem ruído
por corredores que nunca atravessaste,
por cobardia ou conveniência,
mas que talvez ainda esperem,
como os rios esperam os suicidas,
os teus pés atravessando-os
despidos de súbito de todo o abandono.

E lanças a prece a um deus
que talvez permanecesse
desde a infância,
mas que sem saberes lá ficou
espiando altares derrubados
pela luz de uma certa clareza
que a esta hora te falta.

Os convidados
deixam também eles de aparecer.
A festa agora pertence-te,
e já te podes olhar dentro de todo este vazio –
já podes aclarar a voz com que dirás à morte
o teu nome.

["trinta anos", poema de Bruno M. Silva publicado na antologia 110 Anos, 110 Poetas / Antologia Comemorativa dos cento e dez anos da U.Porto, org. Isabel Morujão]

“é já longe de onde me falas”, de Bruno M. Silva

nada nos dirá
que foi daqui que vimos o mundo
ou aprendemos a dor de subir
a última manhã feita
sobre os nossos cabelos
o que disserem de nós estará certo
e será como uma luz junto aos olhos
para o lugar de onde me falas
e no entanto nada nos espera
apenas
o amor feito na escuridão das tendas
o lamber das borras do vinho
e uma garganta que se doira
ao despedir-se de ti

[in A Cabeça em Tróia, ed. Enfermaria 6, 2021]

Bruno M. Silva. A cabeça em Tróia. Lisboa: Enfermaria 6, 2021, ensaio de Nuno Brito

É preciso cuidado com as coisas do mundo

é preciso um coração como o teu, atento

de mãos ágeis sobre a nossa solidão

Bruno M. Silva, A cabeça em Tróia.

A Cabeça em Tróia, primeiro livro de poesia de Bruno M. Silva surpreende pelo deslumbramento e velocidade das imagens que lhe traz um vívido fulgor cinematográfico e por um olhar atento, dignificante e revitalizador do humano. É, definitivamente, um livro para se ler devagar. Muito devagar, e voltar várias vezes, isso mesmo exige a sua profundidade: que o mergulho seja repetido, que o fundo não há, que o mergulho seja no escuro, e que nos traga irremediavelmente um pouco mais dentro. A profundidade é em si um tema percorrido ao longo de alguns dos poemas deste livro: “Com que cara / faremos de novo tudo / afundados já / começando agora a ser outra coisa” (p. 35), “atravessava-o muito à noite / quando a fundura dos campos / lhe aflorava sobre a pele” (p. 20), “então / volta ao princípio / o que importa / é o que disseres / submerso” (p. 16). Muitas das imagens remetem precisamente para uma profundidade líquida: “as crianças a engolir o nome” (13), através das quais a água, e as imagens marinhas se aliam a a uma ideia de intensidade, de memória e de experiência interna. Há transversalmente a “A cabeça em Tróia” um movimento de verticalidade, de cima para baixo, de penetração e de adensamento, movimento em direção ao mais profundo que é também um movimento de interiorização – de fora para dentro – o próprio ato de entrada na cidade de Tróia que a subdivisão da unidade poética sugere a partir das suas três secções “I da praia”, “II da muralha”, “III da cidade”. 

As referências à Antiguidade Clássica, presentes em poemas como “o fantasma de Pátroclo”, “O porto de Naxos”, “A cabeça em Tróia” ou o “O vaso” aliam-se às referências do quotidiano contemporâneo, biográfico, como nos poemas “Três ovos”, “O último comboio para Valongo” ou “Porto Revisited” onde impera um sentido de viagem, interior, num exercício de desmistificação daquilo que se encontra excessivamente ou artificialmente afastado em detrimento daquilo que está perto ou ao alcance do eu: “Como diremos que em certas noites / nem sempre aflorou o sonho / que o ponto mais luminoso de certos dias / foi o pão sobre a mesa, a rota” (p. 35). Há nesse sentido, como no poema que dá o nome ao livro, uma “volta ao princípio” (p. 16) que parte de uma proposta de desaprender, para reaprender, através do espanto, a realidade, entranhando-a enquanto paisagem interior. A verticalidade de A cabeça em Tróia sugere também um movimento de ressurgimento, o de vir à superfície, de aflorar, de emergir tornar visível, expresso em imagens de uma força invulgar: “Tróia, meu deus, toda a noite, o fogo / de manhã, a luz nos meus olhos doentes / e um rosto que das águas emerge puro” (p. 13). A ideia de renascimento é de grande vitalidade neste livro, indissociável de um ressurgimento poético, pela escrita.  Mãe / Campo / Milho / Pão manifestam-se como uma constelação de imagens que povoam este livro de um grande apelo telúrico, através do qual, a presença da figura da mãe é central para a vitalidade das imagens, imagens nas quais a presença do erotismo se entrelaça indissociavelmente à presença da morte: “Mas faltava ainda que o amor / incendiasse a paisagem // que a nossa mãe se despisse / para a eternidade // faltava que a morte / impusesse todo o seu peso // na carne lacerada do amor” (p. 29) “Fizemos tudo / trouxemos a palavra, o incêndio / para que vissem um rosto saturado de beleza // ainda assim um deus feriu-nos / ainda assim a morte” (p.13).  Constitui-se assim uma rede semântica do lado da beleza, da pureza e do fogo que se intensifica e agudiza com a imagem da morte, num sentido revitalizado destas imagens, e num contacto frontal com a sua autenticidade e origem. A beleza e a pureza de A cabeça em Tróia partem de um apuramento concreto das imagens e da linguagem, de uma forte intensidade visual, de uma complexidade que se torna nítida, de um grande poder de transparência, de uma reivindicação de dignidade humana; revitalização das imagens, da linguagem, do poético e nisso mesmo revitalização do eu através da escrita enquanto ato de exigência, de um cuidado e de um atenção  perante as coisas do mundo, feito de um olhar frontal, nítido e digno – transparente e vitalíssimo – atenta ao humano, à vida  e ao fogo de que somos indissocialvelmente feitos.

https://www.incomunidade.pt/bruno-m-silva-a-cabeca-em-troia-lisboa-enfermaria-6-2021/: Bruno M. Silva. A cabeça em Tróia. Lisboa: Enfermaria 6, 2021, ensaio de Nuno Brito